Ética | César Nunes

Educar Para as Virtudes.

Tenho defendido, em muitas  e diversas frentes de debates, que a educação é um longo e exigente processo de humanização, isto é, de produção social e de engendramento cultural da condição e da identidade humana. Não se trata de defender uma posição unilateral, como se somente houvesse esta construção social, isto é, realizada pela coletividade, pelas instituições sociais, com um acento quase que único da dimensão cultural, grupal, histórica, cultural. Há igualmente a apropriação subjetiva, a forma, o ritmo, a cadência ou a identidade de nossa apropriação subjetiva das coordenadas humanas de origem e de identidades  sociais; a forma com que aprendemos a língua, as condições de construção de nossa auto-estima, o acolhimento das pessoas de nossa família, a descoberta significativa do corpo e de suas necessidades e marcas, as vivências com outras crianças, com os adultos, com o mundo exterior, com a sociedade organizada, com toda a civilização e a cultura, através dos saberes, dos conhecimentos, das manifestações dos mais velhos, enfim, de todo o mundo cultural e natural. Somos pessoas híbridas, constituídas pela sociedade, pela nossa natureza, pelas nossas formas próprias  de reagir e assimilar nossas necessidades e estabelecer nossos desejos, de constituir as aprendizagens, de apropriar dos conhecimentos e de observar as atitudes circundantes.

Nesse sentido, a condição humana é aprendida. E, na marcha das sociedades e da civilização, ainda que haja diversas matrizes e diferentes tradições, fomos constituindo modelos e paradigmas de transmissão, de internalização, de educação e de formação dos consensos morais, das matrizes éticas e dos referenciais atitudinais dos grupos. Ninguém nasce ou se faz pessoa sozinho, nascemos numa cultura, e nela nos fazemos homens e mulheres; através da linguagem, na repetição de fonemas e sons, para aprender a falar, no domínio de referenciais sensoriais e motores, para aprender a andar, na apreensão de papinhas e sopinhas até aprender a comer, na estimulação e nas práticas de ninar para aprender a dormir, nas estimulações para rir e nos afagos para aprender a parar de chorar, tudo é aprendizagem! O que é quente e o que é frio, o duro e o mole, as formas físicas do mundo, as regras sociais basilares, os horários, as atitudes esperadas, enfim, a educação social. Aprendemos a ser e a agir como seres humanos, com os outros seres humanos! E, nesta tarefa, aprendemos as coisas materiais,  fundamentais e necessárias para nossa proteção e crescimento, as práticas nutricionais, as coordenadas higiênicas e corporais, as expressões de comunicação, oral, corporal, facial, e todas as suas derivações. Mas, do mesmo jeito que aprendemos as coisas fundamentais para viver; comer, vestir, dormir, andar, teremos que aprender as coisas de natureza moral, isto é, os valores, as regras, os consensos sociais, os hábitos. Nesta segunda dimensão, vamos aprendendo as relações sociais constituídas, os consensos básicos de convivência, as convenções e limites da sociedade, familiar, escolar, social, grupal etc. Há sempre aprendizagens sociais, algumas de base familiar, outras de natureza e de responsabilidade social, isto é, que dizem respeito ao agir na sociedade.

Podemos aprender sempre, e em todos os atos e atitudes humanas há conseqüências de nossas atitudes e ações. E tais conseqüências alcançam tanto nossa realidade pessoal e singular como atingem e expressam sentidos para os demais seres que conosco convivem. Para fortalecer as coisas boas que aprendemos, aquelas que nos dão sustentação como pessoas, vamos constituindo algumas ações referenciadas, com o reforço de sentidos definidos como boas ou bons, e vamos repelindo as ações e atitudes que guardam sentidos considerados nocivos, denominados como supostamente  más ou maus. Aos hábitos ou comportamentos repetidos, de base e natureza consideradas boas ou marcadas pelos efeitos que chamamos bons e necessários, chamamos “virtudes”. Aos hábitos ou comportamentos socialmente negativos, com efeitos que consideramos impróprios ou inadequados, chamamos “vícios”. A tradição filosófica grega dedicou muitas páginas e inolvidáveis reflexões sobre estes temas. Sócrates, Platão e Aristóteles definiram grande parte destes axiomas.

Nesta ambivalência, podemos aprender a viver e a reproduzir, com convicções internalizadas por sentidos simbolicamente fortes, constituintes de nós mesmos, através de hábitos bons, que se reconhecem como virtudes, ou ainda podemos ser educados para a adoção de ações e vivências, comportamentos e atitudes definidas como hábitos ruins, isto é, que produzem coisas consideradas más, definidas como vícios ou hábitos negativos. Esta contradição é paradigmática. Somos educados para viver o bem e para praticar o mal, que sempre são igualmente considerados socialmente produzidos e culturalmente assim definidos. Nada advém de nossa suposta “natureza”. Ninguém é bom ou mal em si mesmo, como se nascesse com algumas marcas já definidas a priori, em sua personalidade, em sua ” alma” ou em sua identidade subjetiva. Esta premissa é originária de tempos muito antigos, que supunham que as almas definiam nossa identidade no mundo, que já havia, antes mesmo do nascimento, almas boas e ruins, que nos constituíam como tal. O sentido do bem e do mal são socialmente constituídos. Nada é definido como se fosse aquém da nossa história ou de nossa experiência cultural. O bem e o mal são condições e dimensões sociais e culturais, aprende-se o bem como aprende-se o mal. Não se nasce com eles. São adquiridos ou internalizados pela educação moral.

Deste modo, para ensinar as virtudes é preciso primeiro reconhecer o que seja a vida virtuosa. Os valores éticos, as elaborações elevadas da beleza e do bem, os valores da convivência e da organização da sociedade, as virtudes pessoais e as virtudes esperadas para a vida social terão que ter legitimidade e reconhecimento como um todo, nas práticas sociais. Somente uma geração de pais, de educadores e de professores, de artistas, de agentes sociais, que vivem determinadas virtudes, poderão ter legitimidade para educar e ensinar para as novas gerações as mesmas premissas éticas e estéticas que desejam para o mundo. A virtude é ensinada, sempre. uma sociedade que eleja a tolerância e a diversidade, a dignidade da vida humana como sagrada, a compaixão, o acolhimento, o respeito a todas as culturas, a solidariedade e o amor – certamente deverá repassar estes valores para seus filhos e filhas! A melhor educação para as virtudes é a persuasão autêntica e o exemplo testemunhal. Como dizia Gandhi: “seja você no mundo a mudança que você deseja para o mundo”. A virtude é ensinada, o melhor ensino é o exemplo, a prática moral!

César Nunes

Da dimensão pública e da natureza da publicidade ou ainda Da dimensão privada e da natureza da privacidade

Tenho pensado muito em escrever algumas considerações sobre a questão das dimensões públicas e privadas de nossa condição social e particular. Vivemos em sociedade, todas nossas ações e todo nosso ser está marcado por esta causa eficiente: somos processo e produto da prática social. Mas, dialeticamente, somos sujeitos, no sentido de assumir uma identidade, ainda que seja uma esfera aberta, histórica, como nosso fulcro identitário, ao mesmo tempo em que somos assujeitados, isto é, submetidos, seja pela educação, pela cultura, pela história. Estas duas dimensões articulam-se em nossa identidade cultural, polimórfica, polifônica, pluralista. Mas, para dar conta do peso existencial que nos abate, constituímos espaços menores, particulares, que significa ” o que é próprio de uma parte”, outros denominamos singulares, que dizem respeito ao pessoal, ao “singular”, ao próprio de cada um. Há dimensões sociais e coletivas, grupais e particulares, pessoais e subjetivas. Cada uma destas dimensões da realidade deveria ser, amiúde, bem compreendida e bem vivenciada.

Eu não abomino a dimensão social, seria uma forma de negação falsa, já que a dinâmica da vida social e da sociedade nos constitui. Mas eu acredito na necessidade de espaços prioritários de segurança afetiva, de desvelamento irrestrito, de calmaria, sem exposição, sem controles extremados, que são os espaços de privacidade, no sentido cultural e psicossocial, como a família, como o círculo de amigos, como os lugares de paz, o deleite do passeio, a praça, os jardins que gosto, a igreja. Nestes espaços eu conheço pessoas, cumprimento uma e outra, riem para mim, acenam, perguntam sobre a gripe, sobre meus filhos etc. Convivo há mais de 3 décadas com estas pessoas. São minha riqueza privada. Viver bem no ambiente privado, neste sentido cultural, no mundo da vida, é uma virtude. E um direito!

Hoje há uma ansiedade para ser visto. Sei que todos precisamos de muitas destas coisas, mas algumas pessoas, sem avaliar bem, extrapolam as dimensões, confundem os ambientes, desarticulam as identidades. Tomam o que é público como se fosse particular ou subjetivo. Desta esquizofrenia ética e política deriva a corrupção, o crime, entre outros fatores. Mas há pessoas que apropriam-se das privacidades (dos outros) como se fossem coisas e objetos públicos, de todos ou para todos! Equivocam-se!

Hoje há a questão das fotos públicas! Gosto de fotos, autorizo que coloquem fotos minhas nas páginas pessoais, como uma forma de convívio, uma distinção, um acolhimento. Aceito todos os carinhosos pedidos, faço poses para fotos. Meu trabalho é público, a atividade ali é pública, não vejo nenhum obstáculo ou dificuldade em tirar e publicar fotos de dimensões e de atividades definidas como públicas. No meu trabalho, a natureza da ação é pública, as fotos registram os olhares, as impressões, os acolhimentos das pessoas ao meu agir, às minha idéias, textos, discursos etc! Todas as fotos públicas eu as cultivo como públicas, as valorizo e respeito!

Mas não gosto de fotos que expõem dimensões privadas, pois a natureza destes espaços é outra! Uma festa de amigos, uma festa em família, um jantar, um churrasco, um batizado, uma celebração – são dimensões particulares, são de um grupo de pessoas, não são públicas, não são, a priori, para todos. Fotografar, com autorização, estes acontecimentos, é parte de nossa cultura. Até mesmo publicar, aqui e acolá, uma ou outra foto, pode até ser visto como uma forma de divulgação. Com limites. Mas deleitar-se em expor fotos, definitivamente privadas, no espaço público, para mim é ume relativa confusão. Eu queria pensar que conviver com alguém, no âmbito privado, é tão grandioso, muitas vezes, que somente a liturgia de estar juntos seria o prêmio, a compensação afetiva. Não há tanta necessidade desta ansiosa e impulsiva vontade de publicizar as coisas do cotidiano, da vida comum e boa do dia a dia! O particular deveria ser visto por aqueles que vivem naquela parte, naquele espaço privado. O singular é da pessoa. Descartes escreveu a famosa tese da modernidade racionalista: Penso, logo existo! Hoje parece que mudamos estruturalmente o texto para: Sou visto, logo existo!

César Nunes